terça-feira, 29 de abril de 2025

Ex-libris I

 POETA DO OCASO 

Sabes que, para mim, tu e muitos homens, com exceção de uns peculiares seres, a Morte haverá de visitar apenas uma vez, em um chamado cortês, um último arauto que põe todos os seres em encontro com um ponto comum da estrada. Mas eis que, para este ser excepcional, um famoso poeta, o primeiro encontro com a Morte não foi o último. Esta veio não para demandar que o poeta extinguisse a chama sagrada da sua própria vida, mas, sim, propor-lhe um contrato – que escrevesse um livro sobre seus feitos, um compêndio de seus anos carrascos.


  O poeta, laureado por reis e imperadores pela prosa marcante, com floreios dignos das mais belas odisseias e a profundidade filosófica dos mais arrebatadores diálogos, foi um homem que nasceu pária. Na falta de recursos, fez sentido da vida pela poesia. Quando era ainda promessa, cantava as elegias dos dias pelas ruas, a troco do pão, e preenchia as lacunas do vocabulário com palavras inventadas que soavam bem aos ouvidos da nobreza. Galgou pelas casas nobres até surgir em exuberantes salões de festas, conquistando cabeças e corações admirados com sua lírica. No seu ápice, escreveu sobre parábolas perdidas e reviveu canções de reis que se esvaeciam pelo tempo. Então, velho e gasto, colocou-se de joelhos quando a própria Morte cruzou seu batente pela primeira vez. “Será esta a visão do fim?”, pensou. Sabia que sim, pois sabem todos no momento em que se dá e dizem para si que é finada a vida.

Antes que o homem se debulhasse em prantos e arrependimentos, o anjo pôs-se a ignorá-lo. Sentou-se à mesa e passou a comer uma das frutas-do-paraíso que este, o poeta, expunha numa cornucópia farta. “Não há necessidade de mesuras, desculpas ou qualquer barganha, não sou eu aquele que vem te julgar. Recomponha-se”, disse e seguiu: "Afirmo-te, poeta, não sou anjo mau como escrevem. Levo aqueles que já não cabem na tigela da criação. Quando eu fui posta a serviço dEle, meu trabalho passou a consistir em arrematar as partes que sobram; colher as flores que evadem do conjunto, as expiradas, as que nascem distantes, as que trazem peste ao rebanho, as que já cumpriram um propósito. A fila de botões a desabrochar é grande e, algumas vezes, Ele tem pressa.”

A Morte então revelou o propósito de sua visita: “Venho e trago comigo tua hora. Não para executá-la, mas propor um pacto. Uma oportunidade que, desde a origem do tempo, jamais foi oferecida ao homem, em sua trêmula existência de carne e ossos.” Revelou, portanto: “Quero que me escreva um livro." Esperava uma composição digna de si, como a criação tinha a própria, cantada pelo próprio Deus; acreditava que seus feitos eram tão dignos quanto os do rebanho do qual tomava conta. “Escreve-me e registra em pena os feitos desta que vigia a criação e procede sem remorso e retorno pelas escadarias, em direção ao jardim da vida. Escreve-me, poeta, com a tinta dos dias nas páginas que sustentam a própria existência."

O anjo disse que a tarefa de traduzir em poema os atos de finamento seria árdua, mas que, se o homem aceitasse, estaria disposto a oferecer-lhe algo desejado por muitos e nunca alcançado. Um favor inconcebível até então por, obviamente, desfazer as amarras naturais que Ele impusera aos descendentes dos que provaram o fruto proibido.

"Ofereço-te por teus feitos e letras, tão magistrais que fazem em mim, um ser vazio de emoções, verter lágrimas tamanha beleza…”, disse o anjo, floreando com as mãos e finalizando o fruto, “Pois eu, Morte, ofereço-te a vida eterna. Não a eternidade que aquele ou aquela ofereceu a um e outro na história da tua humanidade. A vida terrena imaculável, com todos os benefícios que já usufrui. Uma existência que perfure os véus do tempo como uma agulha intacta, indefinidamente.”

Então o poeta se aliviou. Era um artista grande, com grandes feitos, reconhecido por grandes homens. Seria ele em si e a partir de então um marco na humanidade? Não! Era já! Desde que a Morte pessoalmente havia adentrado pela porta da frente. Era desde antes! Desde o momento em que o anjo, em sua mente atarefada, pensou por um momento no seu nome "o poeta".

Restituído de si, sentou-se de frente para o anjo, de coluna ereta e mãos que argumentavam: “Como posso fazer jus a história da Morte? Esta, que segue a vida desde que iniciada pelo próprio sopro dEle”. “Ora”, retrucou o outro, “fará jus, certamente. Não caias na modéstia de achares que és impotente, pois sabes tanto quanto eu quando a tarefa flerta com teu ego enquanto amedronta tua mente”. A Morte finalizou a oferta. E o poeta aceitou. “Então, concedo-te a vida eterna e sejas, portanto, tu e tua morada um ponto cego à existência e ao Tempo. Que Este, o Senhor de todos, ignore-te e que seja eu, a executora dEle, quem vem te ver apenas a fim de fazer-te companhia nesta empreitada que é o ato da poesia”, finalizou o anjo, estendendo o fruto que havia consumido, agora intacto.

O poeta pôs-se a trabalhar – e, assim, o fez por anos, décadas e milênios. Escreveu sobre o dissipar da vida do primeiro irmão bom, uma vez que estava lá quando o anjo estendeu a mão pela primeira vez. Compôs sobre os anos incansáveis da Morte no meio de chuvas intermináveis, das iras da terra, dos males da peste e da deterioração imediata de cidades inteiras. Ele estava lá para sentir o luto pela humanidade agonizante sob o polegar de Deus, à mercê do anjo executor.

Estava lá também o poeta na primeira, segunda e terceira quedas de Babel, para presenciar o extermínio de espécies e durante as ingratas ondas de violência, em que lhe faltavam palavras e os versos surgiam pequenos e tristes. Escreveu sobre a visita carrasca do anjo para reis, profetas, sacerdotes e santos com a mesma pena que escreveu sobre os menores encontros. Mesmo nas visitas às mais esquecidas e ínfimas chamas de vidas, estava lá o poeta para traduzir em palavras o derradeiro abraço.

Nunca nenhuma ruga tomou a sua fronte daquele primeiro encontro com a Morte em diante, mas nunca também terminou o trabalho do poeta, pois jamais terminaria a história da Morte. Esta seguiria de mãos dadas com a vida e, até que existisse um último cordeiro vivo à espera da visita dela, existiria, portanto, o poeta para registrar este encontro.


Escrevi e reescrevi esse conto em vários momentos, desde 2018. Em 2024 a Gabi Müller me ajudou na edição. Obrigado, Gabi!